Verso do poema "(Des)motivo" - do livro "Moinho" - 1ª edição 2006; 2ª edição 2021

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Anunciação


Anunciação era professora, diretora, inspetora, delegada, juíza, promotora... O que ela quisesse ser.

Regina Coelho[1]

Usava blusa ou vestido com mangas compridas ou curtas. Sua roupa compunha-se com sandálias de abotoar nos pés. Gostava também de salto, mas era um tamanquinho bem leve. No pescoço levava quase sempre um colar, que mais parecia um terço. Com lenço na cabeça, sombrinha a tiracolo (fazendo sol ou chuva), ela usava óculos grandes, professorais. E seus gestos diziam de sua sabedoria, das posições sociais que ocupava no tocante ao Ensino.
Não estou certo se Maria Anunciação de Jesus tinha leitura. Mas com os grandes óculos postados e os olhos firmes (em jornais, revistas, livros e papéis avulsos ou acondicionados em pastas), ela se concentrava. Seus dedos ágeis tocavam as letras. E a mulher lia: não sei se o que estava realmente impresso ou se palavras outras que sua mente garatujava.
O seu dedo anular não andava desnudo por Resende Costa. E o anel que levava tinha brasão. Não do sangue nobre que passa de pai para filho, mas de uma formatura a que ela acedera, conforme seu testemunho, depois de muito estudar.
Com o anel de formatura marcando presença, suas mãos seguravam papéis e pastas. Muitas vezes eram jornais mais que dormidos, com notícias do mundo já passadas. A tudo ela segurava junto ao peito. A mão direita firmando o saber no lado esquerdo do tórax, bem rente ao coração.
O seu nome era ignorado por muitas pessoas. Por várias outras, não. Mesmo assim, entre todos sempre havia bocas sem controle, um sadismo sem peia. E apelidavam-na de Ponte Preta, Maria Fumaça e outras alcunhas afins. O apodo que lhe ficou mesmo, o que angariou fama na pequena cidade, foi o de Maria Fumaça.
Incomodavam-na as brincadeiras de mau gosto. Tanto que bradava com os provocadores. Não obstante o incômodo, ela, paradoxalmente, demandava tais provocações, chegando mesmo a não admitir que não percebessem sua presença quando passava, por exemplo, perto de crianças desordeiras. No fundo, adorava quando mexiam com ela. Os seus divertimentos eram dois: o de fazer-se “professora, diretora, inspetora, delegada, juíza, promotora... O que ela quisesse ser” e o de ser a atenção do sadismo de muitas pessoas, aquelas cujas línguas se julgavam inofensivas em suas brincadeiras.
Em 1992, Maria Anunciação de Jesus passou a viver no Lar São Camilo. Com a idade já bem avançada, pôde encontrar ali os cuidados necessários que a passagem do tempo demanda de todos nós.
Nessa casa de idosos, minha mãe foi conversar com ela certo dia e lhe perguntou se estava tudo bem. “Ah, tô, minha fia! Tô sim.” E em seguida, corrigindo-se no português: “Só que estou afastada do Assis Resende [Escola]. Tanto que fazer parado! Os alunos e professores sem inspeção! Só Deus para tomar conta, né?!”
Estive com ela, também no Lar São Camilo, no segundo semestre de 2016. Fui lá com minha irmã e sobrinhas para fazermos com os idosos uma pequena festa. Levamos guloseimas, com o devido cuidado de pensar nos casos que demandavam dietas específicas. A confraternização foi boa, deveras. Até encontrei uma simpática senhora que grudou em mim, me abraçando e me beijando a torto e a direito, dizendo que eu era o seu noivo. E que depois ainda ficou lamentando por ter um nubente tão desleixado que não quis lhe beijar a boca. Vejam só! Mulher tão alegre, de vida tão esfuziante, e com energia para dar e vender!
Em certo momento, numa fuga da “minha noiva”, fui ao quarto de dona Anunciação. Ela já estava impossibilitada de se levantar e, portanto, não fora ter conosco no simples festejo. Com olhos esbranquiçados, já não enxergava mais. Não por praxe, mas por um amor espontâneo, indaguei-lhe como estava. Me disse que não se encontrava bem e me pediu que rogasse a Deus para que ela pudesse ter o necessário e final descanso.
Meses depois ela fechou os olhos já cansados de tanta vida. Nos deixou no dia 20 de janeiro de 2017. Se esperasse por mais uns 65 dias, teria entrado na vida eterna na mesma data em que, pela tradição católica, o arcanjo anunciou à Virgem o advento do Cristo. Isso, porém, não importa. Sendo o calendário criação humana, qualquer dia é dia de nascer. E Maria Anunciação anunciou-se às portas do Céu. Agora sem cegueira, sem pernas fracas, mas ainda com seus óculos professorais e eternos.


[1] Do artigo “Tempos de Anunciação” – Jornal das Lajes, 16 de fevereiro de 2017. Disponível em https://www.jornaldaslajes.com.br/colunas/contemplando-as-palavras/tempos-de-anunciacao/1001.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Ler e escrever: fabulação, memória e vida


Discurso de posse
Acadêmico: Evaldo Balbino
Cadeira no 1 – Patrono: Severiano Nunes Cardoso de Resende



Ler e escrever: fabulação, memória e vida


Evaldo Balbino


Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do Passado antes que o Tempo passe tudo a raso.

Cora Coralina, 1985, p. 39




Cumprimento à presidência desta Academia, bem como a todos os estimados confrades e confreiras aqui presentes. Do mesmo modo saúdo aos demais ouvintes e partícipes desta sessão.
De imediato também agradeço a esta casa pelo modo caloroso com que o meu nome está sendo acolhido para compor esta irmandade de letras, cuja existência é importante para o estímulo à cultura de uma sociedade.
        Saudações e agradecimento feitos, prossigo minha fala lembrando o famoso verso de Fernando Pessoa: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce” (Pessoa, 2001, p. 78). Não reatualizo aqui o tom mítico e glorioso do livro Mensagem, em que o poeta português representa um Portugal saudoso de seu passado heroico, sonhador de um futuro messiânico e por isso mesmo uma nação imersa em brumas e incertezas. Já que todos somos ladrões de palavras, parafraseando o psicanalista francês Michel Schneider (SCHNEIDER, 1990), o que faço, roubando o poeta das múltiplas faces, é dizer que venho sonhando desde o início de minha existência. E acredito que o venho fazendo a partir de um querer que é meu por empréstimo, por mercê de outra vontade anterior à minha, um desejo divino. E de tanto sonhar e querer o que antes fora querido para mim, estou aqui hoje proferindo estas palavras na Academia de Letras de São João del-Rei.
        Cada obra que nasce num direcionamento positivo (sejam livros, atos, conhecimentos produzidos, amizades cultivadas, títulos recebidos...) é parto sempre em processo num percurso onde o querer divino e o sonho humano se irmanam. E dessa irmandade germinam os frutos cem por um, da mesma maneira milagrosa e real com que o Evangelho diz ser possível propagar-se a palavra de Deus (MARCOS, 1999, p. 66).
        Algumas realizações me trouxeram até aqui. Ou melhor, alguns sonhos. Para não desdobrar tanto o que tenho a dizer, atenho-me, em termos gerais, aos sonhos poéticos que em mim começaram a germinar lá mesmo na minha infância: os artefatos construídos através de palavras.
        Desde criança, os mundos ficcionais e as imagens construídas por poetas me fisgaram. A literatura me enredou como se prende à rede um peixe. Mas aqui não se trata de um peixe arredio nas possibilidades aquáticas. Minha entrega ao verbo poetizado foi e é amorosa. Sou prisioneiro das tramas que a arte faz e me permite fazer.
Jacó lutando com o anjo; a passagem hebreia pelo Mar Vermelho; o Sol retrocedendo em favor da fé de um homem; Daniel na cova dos leões; o Cristo descendo ao Hades e ascendendo aos céus... as inesquecíveis memórias da boneca de pano Emília; Marcelo, marmelo, martelo; O bonequinho doce; A bonequinha preta; A arca de Noé; Ou isto ou aquilo... E assim prosseguiam as leituras/escrituras, sagradas ou não. Mas ao fim e ao cabo todas sagradas. Nos inícios da minha jornada, os autores bíblicos, Monteiro Lobato, Rute Rocha, Alaíde Lisboa de Oliveira, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles e outros cultivadores da arte da palavra me estimularam a amar a vida através de enredos e cantos, as redes da arte. Tessituras.
Com o tempo fui percebendo que esse amor nunca fora e nunca é em vão. Além do prazer estético, que é fundamental para o que há de humano em nós, a arte vem me mostrando cada vez mais o seu poder, não apenas de construir mundos possíveis, mas também de me plantar neste mundo mesmo, apontando-lhe o sublime e o baixo, e sempre fazendo isso com beleza.
Como, por exemplo, não nos lembrarmos de Goya e da sua tela Os fuzilamentos de três de maio? Ali, o terror de um massacre é representado de modo firme pelas mãos do pintor. Diferentemente de uma cena real de fuzilamento, o quadro é belo em suas pinceladas rápidas e em seu jogo de luz e sombra. A fleuma assassina consubstancia-se na frieza das cores mortas, enquanto as personagens martirizadas expressam seus terrores inundados de intensa claridade.
Não é de sadismo que se trata esta contemplação da tela de Goya. Antes é o vislumbre de como a beleza da arte nos salva da vida nos jogando na própria necessidade premente do viver. A arte nos ensina a reorganizar o mundo, a fabular suas configurações, para melhor o apreciarmos no que ele tem de amorável e para suportarmos o que ele possui de doloroso.
As memórias da boneca de pano Emília fazem isso muito bem. Elas fabulam mundos possíveis, mentiras criativas e devaneios certos, para arrematarem com esta admirável e humana reflexão:

Antes de pingar o ponto final quero que saibam que é uma grande mentira o que anda escrito a respeito do meu coração. Dizem todos que não tenho coração. É falso. Tenho, sim, um lindo coração – só que não é de banana. Coisinhas à toa não o impressionam; mas ele dói quando vê uma injustiça. Dói tanto, que estou convencida de que o maior mal deste mundo é a injustiça.
Quando vejo certas mães baterem nos filhinhos, meu coração dói. Quando vejo trancarem na cadeia um homem inocente, meu coração dói. Quando ouvi Dona Benta contar a estória de D. Quixote, meu coração doeu várias vezes, porque aquele homem ficou louco apenas por excesso de bondade. (...) e estou vendo que é isso que acontece a todos os bons. Ninguém os compreende. Quantos homens padecem nas cadeias do mundo só porque quiseram melhorar a sorte da humanidade? Aquele Jesus Cristo que Dona Benta tem no oratório, pregado numa cruz, foi um. Os homens do seu tempo que só cuidavam de si, esses viveram ricos e felizes. Mas Cristo quis salvar a humanidade e que aconteceu? Não salvou coisa nenhuma e teve de aguentar o maior dos martírios.
Quando falo assim, Narizinho me chama de “filósofa” e ri-se. Não sei se é filosofia ou não. Só sei que é como sinto e penso e digo.
Eu era uma criaturinha feliz enquanto não sabia ler e, portanto, não lia os jornais. Depois que aprendi a ler e comecei a ler os jornais, comecei a ficar triste. Comecei a ver como é na realidade o mundo. Tanta guerra, tantos crimes, tantas perseguições, tantos desastres, tanta miséria, tanto sofrimento...”. (LOBATO, 1952, p. 140-141)

Eis uma boneca de pano pensante dividindo seus sentimentos com o leitor. E denunciando, ambos (ou melhor os três), as mazelas do mundo. Escrevendo e lendo, Monteiro Lobato, Emília e eu formávamos três vozes se tecendo com as malhas da vida. Isso aconteceu quando li essa deliciosa brochura contendo as memórias da boneca inteligente e atrevida. Aconteceu e ainda acontece. Lobato e suas mãos se foram, mas a sua obra permanece. Tanto é verdade, que estou aqui, hoje, ruminando tais palavras sábias e belas. Eis a arte atravessando o tempo, o tempo com “T” maiúsculo, o tempo que “passa tudo a raso”, no dizer de Cora Coralina. Com a arte, burlamos esse tempo inexorável.
Do mesmo modo o meu conterrâneo, o escritor Gentil Ursino Vale, burlou o Tempo, reinventando memórias da vida e, em específico, de Resende Costa. É um de seus narradores que também nos diz: “Meu mal foi o de ter aprendido o ABC. Ele foi a tocha que me alumiou a vereda do sofrimento” (VALE, 1982, p. 14). Isso é dito num conto cujo título é justamente “Lamento da terra verde”. A leitura, e mais ainda a leitura da literatura, nos descortina as visões da mente. O horizonte do pensar fica mais desanuviado em relação ao mundo. A representação artística nos enreda mais, e mais nos faz pensar sobre aquilo que ela representa. As cores, o ritmo, os sons, as palavras de certo modo agrupadas... tudo isso produz arte que nos emaranha num saber pleno de sabor – doce e amargo, ao mesmo tempo.
Este célere passeio que ora faço (pela singela poética de Cora Coralina, pela caudalosa poesia de Fernando Pessoa, pelos autores bíblicos, por uma tela de Goya, por algumas das minhas primeiras leituras infantis e pelas palavras de Gentil Ursino Vale) é para falar de uma entrega amorosa que devoto desde cedo às letras em estado poético. Uma dedicação ao abc que me traz luz e escuridão. E no cômputo geral desse empenho, o que resulta é sempre lucidez. Claro olhar para o passado e para o presente. Um sonho desejoso de futuro.
E, na lucidez que me atravessa, espero, a partir de agora, contribuir um pouco e humildemente com esta Academia cuja função é nobre. O que uma casa de letras tem em mãos é o poder de permanência e de renovação, por possibilitar a convivência fraternal em torno da literatura, da educação, das artes, da memória e, sobretudo, da palavra. A palavra que se falou e que se perdeu. Mas também o verbo que se guardou em registros da vida e que pode e deve ser resgatado e reconstruído nas revisitações que fazemos aos que nos antecederam e aos que nos são coetâneos. A memória, quando cultivada e refeita, é terreno fértil para a permanência e reformulação das culturas em suas múltiplas vitalidades.

Academia de Letras de São João del-Rei
São João del-Rei, 26 de novembro de 2017


Referências bibliográficas

CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 7 ed. São Paulo: Global, 1985. p. 39.
LOBATO, Monteiro. Memórias de Emília e Peter Pan. São Paulo: Brasiliense, 1952. p. 140-141 (Obras completas de Monteiro Lobato, vol. 5).
MARCOS 4,8. Bíblia de estudo Almeida – Revista e atualizada. Barueri – São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. p. 66.
PESSOA, Fernando. Mensagem. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001. p. 78.
SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras: ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento. Tradução de Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990, 503 p. (Coleção Repertórios).
VALE, Gentil Ursino. Confidências do Agreste. Belo Horizonte: São Vicente, 1982. p. 14.